Redes de Cuidado

A Linha de Pesquisa “Redes de Cuidado” tem como principais objetivos:

• Identificar o “estoque” de saberes e conhecimentos tradicionais, seu apossamento, uso social e disponibilização entre as populações tradicionais da BTS;
• Identificar, descrever e caracterizar do ponto de vista etnográfico como se formam, organizam e articulam as redes sociais voltadas para os processos produtivos e cuidado social;
• Identificar, caracterizar e compreender como se processa o reconhecimento comunitário das redes sociais de cuidado e sociabilidade, mapeando as relações entre os indivíduos, grupos e instituições que se auto-reconhecem como promotores deste cuidado;
• Identificar, caracterizar e analisar as modalidades possíveis de entrecruzamento das redes pública de atenção à saúde e as redes de saberes tradicionais;
• Investigar como as novas dimensões do “cuidado” propiciam interação com outras abordagens terapêuticas tradicionais e as controvérsias geradas nesse processo;
• Identificar, caracterizar e analisar as noções de doença, saúde, tratamento e cura dos terapeutas tradicionais e de sua clientela, bem como descrever as experiências terapêuticas em seu trânsito pelas redes de cuidado;
• Identificar, caracterizar e analisar a presença e uso de elementos da flora e fauna (elementos etnobiológicos, etnofarmacopéicos) em processos terapêuticos tradicionais, assim como as estratégias de atribuição de significados hierofânicos e capacidade de promover, manter e resgatar a saúde quando esta é perdida.

Fundamentação Teórica

Para investigarmos saberes tradicionais faz-se necessário a problematização do tradicional (saberes terapêuticos e sociabilidades tradicionais, populares, religiosas) e do moderno (biomedicina, modernização urbanística, turismo etc.) como referentes unívocos e estanques, tomando como campo de investigação empírica as redes de cuidado onde se entrecruzam alternativas muito variadas. Nesse contexto, observam-se tensões, mas também formas de articulação e “convivência” de orientações e práticas nos territórios da pesquisa. Assim, faz-se necessário investigar a diversidade como práticas em rede no sentido em que lhe atribui Latour (2006), considerando a heterogeneidade dos mediadores humanos e não humanos aí mobilizados.

A categoria de cuidado será pensada como as práticas que apontem para a elaboração de vínculos com o “outro” em suas variadas dimensões. Essa concepção do cuidado permitirá uma abrangência maior da idéia de cuidado como intervenção terapêutica sobre os corpos, implicando também idéias como proteção, escuta, bem-estar, ajuda mútua etc.

A problematização da questão terapêutica vem produzindo desdobramentos políticos que tem adquirido grande visibilidade social. Pode-se também ressaltar, nesse processo, a revitalização da religião e das práticas terapêuticas tradicionais de matrizes indígena, afro-brasileiras e eurobrasileiras reconhecidas cada vez mais como um domínio legítimo no que se refere à promoção da qualidade de vida e da saúde. Da mesma forma, é também importante que sejam investigados os processos que constroem as significações “mais ou menos” terapêuticas nas experiências dos agentes envolvidos, que transcendem os limites da regulação dos cuidados com a saúde e os corpos para situar-se nas relações entre outros processos de construção de vínculos, que envolvem as dimensões da experiência, dos contextos rituais e a sociedade mais abrangente.

Essas dimensões do cuidado são acessíveis através da experiência dos sujeitos nas relações entre si, com não humanos e com os objetos. Assim, investigar a dinâmica da experiência dos sujeitos nas práticas cotidianas é central para que possamos compreender as variedades de recursos terapêuticos e redes de solidariedade. Nesse processo evidenciam-se diferentes articulações (sempre sujeitas a reinterpretações) entre o cuidado médico e as terapêuticas tradicionais e/ou religiosas.

Assim é que conferimos especial destaque e atenção às reivindicações dos praticantes e terapeutas, bem como sua clientela, com relação à implantação de um modelo de atenção à saúde culturalmente sensível, que possa lidar adequadamente com suas necessidades e demandas em saúde e reconhecer e evidenciar os saberes médicos tradicionais como parte das estratégias de busca e provimento de atenção básica e especializada em saúde.

Os conceitos de experiência social e de itinerário, centrais nas novas abordagens dos estudos de identidade, podem ser resignificados através dos conceitos de rede e de agenciamento. Segundo Latour, um problema implicado na concepção fenomenológica de experiência reside no reconhecimento de que os processos de significação são elaborados primordialmente nas relações face a face, suspeitando de toda e qualquer proeminência do contexto (considerado como a instância que constrange a ação), o que tornaria a ação mera repetição de estruturas que lhes são anteriores. Recusando também o contexto como uma instância hierarquicamente anterior e determinante ao curso da ação, Latour (2006, p.353) constrói uma outra linha de investigação, em que as fontes da incerteza encontram-se distribuídas por uma extensão muito mais ampla. Assim, a potencialidade do conceito de experiência poderia ser melhor aproveitada situando-a no processo de confecção das redes de mediadores, ou seja, recusando planos explicativos subjacentes à ação, mas ao mesmo tempo, alargando o campo de visão para além das abordagens micro na medida que a extensão das redes produzem muitas pequenas, mas fundamentais diferenças no social que continuamente se redesenha.

Um deslocamento pode ser sugerido na investigação dos processos intersubjetivos – impliquem eles decisões, hesitações, expectativas, desejos, imagens – apontando um leque bem mais amplo de mediações possíveis que caracterizariam toda e qualquer prática. Nos mundos possíveis que emergem dessa perspectiva, a criatividade não constitui um atributo situado no âmbito da cognição humana, mas configuraria uma potencialidade inscrita na ontologia dos mundos, ou como diria Ingold, atributos na forma de skill, intrinsecamente articulado à feitura dos corpos.

Mas como descrever através de categorias adequadas essas experiências que mobilizam “agenciamentos eficazes”, ou seja, que não envolvem representações sobre coisas, mas transformações corporais importantes? Um caminho interessante para se recolocar essas questões parece ser o conceito de agenciamento, onde se combinam pensamentos, afetos, simbolizações e formas de organização do social.

Ao enfocarmos o agenciamento é preciso romper com a dualidade acerca dos conceitos de representação e prática, bem como a discussão sobre a anterioridade de um sobre o outro. Os agenciamentos são necessariamente complexos, pois são movimentos que fazem fazer (numa acepção latouriana), não podendo ser decompostos em seqüências causais para ser supostamente compreendido. Não são representações sobre coisas, nem formas de propriedade ou controle.

Seguindo nessa direção, o conceito deleuziano de agenciamento possibilita uma compreensão das transformações que se operam nas relações entre “agenciamento maquínico dos corpos” e os “regimes de significação” (1995, Platô 4). Dessa fricção, algumas conseqüências podem ser destacadas: a) o enunciado não comparece como uma conseqüência das relações, mas intervém nelas; b) os agenciamentos concretos combinam em formas variadas os pólos “molares” – dos grandes agenciamentos sociais – e os “moleculares”, decorrentes da forma como os indivíduos neles investem; c) esse investimento dos indivíduos pode ser dar no sentido da “territorialização” ou da “desterritorialização” dos agenciamentos.

Entrever nos agenciamentos concretos as possibilidades que daí emergem parece ser mais promissor do que ancorar antecipadamente a análise num dos pólos acima apontados. Se os agenciamentos sociais combinam as dimensões molares e moleculares, resta-nos perseguir a forma como se processa essa combinação: em que medida os agenciamentos locais coletivizam ou desterritorializam através das suas linhas de fuga.

A idéia de que emoções, subjetividades e corpos são “feitos” através de agenciamentos eficazes propicia um deslocamento importante na compreensão das práticas terapêuticas. Esse deslocamento também possibilita reconhecer diferentes ontologias da diferença, considerando, além das diferenças identitárias, as diferenças intensivas (ou “devires”). Recusando a démarche tradicional que opõe emoção e afeto (ausência de significação) ao conhecimento (produção reflexiva), essas “dimensões” encontram-se necessariamente implicadas nos processos de ação. Assim, os agenciamentos concretos (e o indivíduo se constitui num agenciamento) são necessariamente instáveis, já que processam em graus variáveis esses dois movimentos, onde as “afecções” não são tomadas como “ruídos” desestabilizadores das ações, mas possibilidades de desterritorialização de agenciamentos estabilizados, redefinindo corpos e enunciados.

O conceito deleuziano de agenciamento possibilita entrever, na imanência das situações concretas, a oscilante “composição” entre forças de estabilização e desestabilização (DELEUZE e GUATARRI, 1995). A experiência do adoecer encontra-se marcada por escolhas e indecisões, dilemas e expectativas quanto ao desenrolar das trajetórias individuais. Se por um lado, essas trajetórias colocam em evidência os processos de subjetivação; por outro, como estes não estão “dados” anteriormente à experiência, não é possível supor de antemão quais os seus contornos e formas de simbolização.

Dessa forma, processos de disseminação, resignificação, assimilação e “contágio” dos saberes e práticas tradicionais podem ser compreendidos em sua dinâmica rizomática, de sistema aberto que subverte o modelo arbóreo de estruturação das terapêuticas oficiais no âmbito dos sistemas de saúde. As redes de cuidado e sociabilidade atravessam o espaço público, e sem configurarem um sistema estruturado, alternativo ao oficial, mobilizam novas conexões e imprimem dinamismo à paisagem contemporânea.